A vistoria de veículos terrestres é atividade regulada pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran), em atendimento ao disposto nos artigos 22, inciso III, e artigos 130 e 131 do Código de Trânsito Brasileiro, instituído pela Lei 9.503/97.
A Resolução 5, de 1998, do Contran especifica que, nos casos de mudança de características originais, transferência de propriedade e domicílio, os veículos devem proceder uma vistoria para verificação dos equipamentos obrigatórios, sistema de sinalizaçãoe iluminação, bem como a procedência de peças e do próprio veículo, quanto aos elementos de identificação veicular, permitindo o não licenciamento de veículos sem condições mínimas de trafegabilidade, total ou parcialmente, adulterados ou objeto de crime de roubo e furto e qualquer outro tipo de fraude.
O histórico dessa atividade remonta ao Código anterior, a Lei 5.108, quando era permitido à autoridade, de forma discricionária, requerer a vistoria, sempre que julgasse necessária, sendo executada pelos Departamentos de Trânsito dos Estados e do Distrito Federal (Dentra's).
Ocorre que, desde a vigência do CTB, que data de 1998, a frota de veículos, segundo dados do Registro Nacional de Veículos Automotores (Renavam) acresceu em impressionantes 268%, passando dos 24.361.347 veículos em 1998, para atuais 64.817.974, como revela o Dentran.
Certamente, com o crescimento da frota e a falta de capacidade de investimento do estado, as condições de realização das vistorias pelos Detran's se tornaram cada vez mais precárias, com a constante de filas, falta de pessoal e descontrole, com freqüentes denúncias de corrupção e a exploração do mercado de ocasião - extintores de incêndio e triângulos de segurança, nas proximidades dos locais de vistoria.
A situação exigia uma disposição drástica, tendo o Contran editado, em 2008, a Resolução número 282, prevendo a possibilidade de realização do serviço por empresas credenciadas junto ao Departamento Nacional de Trânsito, um mercado que, desde então, cresceu diante da ineficiência dos órgãos estaduais, contando atualmente com mais de mil empresas de vistoria credenciadas, denominadas ECVs.
Todavia, a atuação de empresas privadas no ramo de vistoria veicular encontra resistência dos Detran's, que alegam ter a competência exclusiva para a realização da atividade, conforme disposto no artigo 22, inciso III, do CTB e se trata de atividade de exercício do poder de polícia, indelegável a particulares.
Estados como Santa Catarina, Paraná, Distrito Federal, Rio Grande do Norte e Minas Gerais nunca admitiram a atuação das ECVs, que trabalham com liminares judiciais, e, mais recentemente, dezembro de 2010 e fevereiro de 2011, o Detran paulista e o Detran mineiro, respectivamente, determinaram a não aceitação de laudos de vistorias realizados por empresas privadas, estados que eram os maiores mercados das ECVs, com a maior quantidade de empresas credenciadas.
Amparados na suposta inconstitucionalidade e ilegalidade da medida federal, alegam os órgãos de trânsito dos estados e do Distrito Federal, descumprimento à Lei das Licitações, usurpação de competência delegada e até mesmo a quebra do pacto federativo e a incompetência legislativa e regulamentadora federal.
Em que pese os esforços dos Detran's em assegurar a todo custo uma vultosa arrecadação de taxas de vistorias, além da conservação de interesses de grupos enraizados nos setores públicos de vistoria, politicamente rentáveis a esses maus servidores públicos, não há ilegalidade nas medidas tomadas pelo Contran e Denatran.
Para um melhor entendimento, devemos ler com cuidado o inciso III do artigo 22 do CTB, que diz:
Art. 22. Compete aos órgãos ou entidades executivos de trânsito dos Estados e do Distrito Federal, no âmbito de sua circunscrição:
III - vistoriar, inspecionar quanto às condições de segurança veicular, registrar, emplacar, selar a placa, e licenciar veículos, expedindo o Certificado de Registro e o Licenciamento Anual, mediante delegação do órgão federal competente.
Observa-se, inicialmente, que a vistoria, bem como as demais atividades (inspeção de segurança, emplacamento e licenciamento anual), é objeto de delegação, ou seja, são de competência originária da União e repassadas aos órgãos executivos estaduais e distrital. Sendo a União a detentora originária da competência, inclusive por decorrência da competência privativa prevista no artigo 22, inciso XI, da Constituição da República Federativa do Brasil, poderá delegar a atividade também a outra entidade, ou até mesmo tomar pra si a realização dessa atividade, inclusive por intervenção, como previsto no artigo 19, parágrafo 1º, do CTB, por exemplo.
Tal inconformismo dos Detran's também surgiu da regulamentação da inspeção veicular, atividade que se diferencia da vistoria na profundidade e por se tratar de serviço de engenharia, com uso de equipamentos de testes informatizados, inclusive com a análise de emissão de gases, poluentes e ruídos. Quando em 1996 e depois em 1998, o Contran regulamentou a atividade de inspeção veicular, em 1998 fundamentado no artigo 104 do CTB, a atividade seria exercida por concessionárias privadas ou até mesmo pelo próprio Estado, sendo no primeiro caso, precedida de processo licitatório, houve protestos. Foi questionado pelos Estados a usurpação da competência que, supostamente era dada com exclusividade pelo artigo 22, inciso III, do CTB, o que foi afastado pelo Supremo Tribunal Federal, em julgado mais recente, de relatoria do Ministro César Peluso, com o seguinte teor:
AÇÃO DIRETA. LEI 6.347/2002, DO ESTADO DE ALAGOAS. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA. TRÂNSITO. TRANSPORTE. VEÍCULOS. INSPEÇÃO TÉCNICA VEICULAR. AVALIAÇÃO DE CONDIÇÕES DE SEGURANÇA E CONTROLE DE EMISSÕES DE POLUENTES E RUÍDOS. REGULAMENTAÇÃO DE CONCESSÃO DE SERVIÇOS E DA SUA PRESTAÇÃO PARA ESSES FINS. INADMISSIBILIDADE. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA EXCLUSIVA DA UNIÃO. OFENSA AO ART. 22, XI, DA CF. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. PRECEDENTES. É inconstitucional a lei estadual que, sob pretexto de autorizar concessão de serviços, dispõe sobre inspeção técnica de veículos para avaliação de condições de segurança e controle de emissões de poluentes e ruídos. ( ADI 3.049, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 4-6-2007, Plenário, DJ de 24-8-2007.)
No mesmo sentido temos a ADI 1.972-MC Rel. p/ o ac. Min. Nelson Jobim, julgamento em 16-6-1999, Plenário, DJ de 9-11-2007; ADI 1.666-MC, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 16-6-1999, Plenário, DJ de 27-2-2004.
Assim, da mesma forma que a regulamentação da inspeção veicular definiu critérios para a licitação e outorga de concessão a empresas privadas para o serviço de inspeção, tem por interpretação lógica o Contran e o Denatran a competência legal para definir o credenciamento de empresas privadas também para realizar o serviço de vistoria.
Ressalte-se que, tanto a regulamentação da inspeção (suspensa por questões meramente políticas), quanto a da vistoria veicular, indicam critérios que poderão ser atendidos também pelos órgãos estatais para a realização do serviço que, em se tratando de credencial (equiparara a uma autorização) será realizada em concorrência com outras entidades igualmente autorizadas pelo Denatran.
As Empresas Credenciadas de Vistoria, individualmente ou em ações coletivas, têm conseguido atuar quando ilegalmente obstadas pelos órgãos estaduais de trânsito por meio da provocação do Poder Judiciário, que assim têm se manifestado, conforme julgados nos Estados de Santa Catarina, São Paulo e Rio Grande do Norte, conforme segue:
MANDADO DE SEGURANÇA. NEGATIVA DE RECEBIMENTO DOS LAUDOS DE VISTORIA DE VEÍCULOS AUTOMOTORES CONFECCIONADOS POR EMPRESA CREDENCIADA PELO DEPARTAMENTO NACIONAL DE TRÂNSITO - DENATRAN. ILEGALIDADE. PLAUSIBILIDADE DO DIREITO INVOCADO E FUMUS BONI JURIS DEVIDAMENTE DEMONSTRADOS. CONCESSÃO DA LIMINAR QUE SE IMPUNHA. AGRAVO DESPROVIDO.
Hipótese em que o Estado de Santa Catarina defende a legitimidade do ato de recusa dos laudos de vistoria elaborados por empresa credenciada pelo Denatran, nos termos da Portaria n. 131/2008, do mesmo Órgão, aos fundamentos de que a Resolução Contran n. 282/2008, 1.0024.09.589279-0/001, não autorizou as credenciadas a realizarem a vistoria prevista na Resolução n. 05/2008 e de que é indispensável a realização da licitação.
Teses de evidente insubsistência, diante da menção específica, no artigo 1º da Resolução n. 282/2008, à possibilidade de a vistoria de que cuida a Resolução n. 05/2008 ser realizada por empresas credenciadas e também diante da necessária submissão do órgão de trânsito estadual às normas emanadas do Denatran, a quem compete normatizar os procedimentos sobre aprendizagem, habilitação, expedição de documentos de condutores e registro de licenciamento de veículos.
Caso, ademais, em que claramente se adotou o sistema de credenciamento, porque dispensável a licitação. (Agravo de Instrumento n. 2009.043621-9, da Capital, Relator: Des. Vanderlei Romer - TJSC).
1. Postulam as impetrantes a reconsideração da respeitável decisão que indeferiu a liminar. Presente o risco de ineficácia caso a medida seja somente apreciada ao final (art. 7º III da Lei 12.016/09), uma vez que pelos Comunicados DETRAN nº 01/10 e 02/10, ora combatidos, os laudos de vistoria dos impetrantes não serão mais aceitos a partir de amanhã, e por reconhecer, neste momento inicial, que há plausibilidade nas alegações dos impetrantes, reconsidero em parte a decisão de fl. 1874/5 e defiro a liminar para que as autoridades impetradas aceitem os laudos de vistoria veicular confeccionados pelos impetrantes até que seja julgada a segurança, ou pelo período de seus credenciamentos válidos pelo DENATRAN, conforme o caso de cada impetrante. Em princípio, há demonstração, na inicial, que os impetrantes exercem regularmente atividade delegada de vistoria de veículos, cadastrados perante o DENATRAN, de acordo com a divisão de competências estabelecida pelo Código de Trânsito. Assim, há que ser detidamente analisado se há exorbitância de atuação ou não por parte do órgão estadual de trânsito, ao recusar os laudos de vistoria das empresas cadastradas a tanto pelo órgão nacional, alterando a sistemática anterior. 2. Após a juntada das informações das autoridades, ouça-se o representante do Ministério Público, em dez dias. 3. Em seguida, tornem conclusos para decisão. Int. (Decisão de Primeiro Grau, Juízo da 7ª Vara da Fazenda Pública da Capital, Processo MS 0047711-90.2010.8.26.0053).
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. LIMINAR EM MANDADO DE SEGURANÇA. VISTORIA VEICULAR PARA AVALIAÇÃO E REGISTRO DE AUTOMÓVEL. ATOS EXECUTIVOS DO PODER DE POLÍCIA. ATIVIDADE QUE NÃO SE CONFUNDE COM O PRÓPRIO PODER DE POLÍCIA. POSSIBILIDADE DE DELEGAÇÃO A PARTICULAR. ART. 25 DO CTB. AUTORIZAÇÃO EM CARÁTER PRECÁRIO PARA VISTORIA DADA PELO DENATRAN, EM CONSONÂNCIA COM REGRAMENTO ADMINISTRATIVO DO CONTRAN. PRESENÇA DOS REQUISITOS AUTORIZADORES DA CONCESSÃO DE LIMINAR. IMPEDIMENTO DE REALIZAÇÃO DA ATIVIDADE POR TERCEIROS. IMPOSSIBILIDADE. ATIVIDADE EXERCIDA EM REGIME DE CONCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DO FUMUS BONI JURIS. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. Acordam os Desembargadores que integram a 1ª Câmara Cível deste Egrégio Tribunal de Justiça, à unanimidade de votos, em consonância com o parecer da 20ª Procuradoria de Justiça, em conhecer e dar provimento parcial ao agravo de instrumento, a fim de que o agravado seja compelido a autorizar o início das atividades da agravante, em caráter liminar, recebendo os laudos emitidos para avaliação e registro veicular, nos termos da Resolução nº 282/2008 do CONTRAN, nos termos do voto do relator que integra este acórdão. (Agravo de Instrumento com Suspensividade n° 2009.012514-1 , Relator: Desembargador DILERMANDO MOTA – TJRN).
Cabe salientar algumas regras da delegação de serviço público, que podem ser melhor entendidas se observados os conceitos de serviço público e de delegação. O eminente administrativista Hely Lopes Meirelles elaborou um conceito de serviço público, dele separando as atividades legislativa e judicial do Estado. Segundo o autor, serviço público “é todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniência do Estado”.
Já Celso Antônio Bandeira de Mello, por outro lado, adota um conceito mais restrito, salientando que “serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestado pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e restrições especiais -, instituído pelo Estado em favor dos interesses que houver definido como próprios no sistema normativo”.
Por fim, Maria Sylvia Zanella de Pietro conceitua o serviço público sendo “toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público”.
A delegação, segundo di Pietro, é a transferência de competência de um órgão ou cargo a outra pessoa, entidade ou ente privado, geralmente de nível hierárquico inferior, para o cumprimento da função designada originalmente a quem delega. Verifica-se dos conceitos uma regra no âmbito de serviços públicos, que os mesmos são em regra passíveis de delegação, independem de autorização legislativa e são delegados por critério de conveniência e oportunidade do órgão estatal detentor da competência originária para exercer a atividade (denominado mérito administrativo).
Na teoria administrativista tradicional, defendida com poucas variações por Hely Lopes Meirelles, Maria Sylvia Zanella di Pietro, Casagne e outros renomados autores, para se considerar os atos administrativos de credenciamento de empresas de vistoria nulos, os mesmos deveriam infringir aos requisitos do artigo 2º da Lei de Ação Popular, quais sejam: competência, objeto, forma, motivo e finalidade.
Resumindo: os credenciamentos concedidos pelo Dentran às Empresas Credenciadas de Vistoria não apresentam vício de competência, visto que delegados pelo detentor da competência originária, o objeto é lícito (serviço público de vistoria de veículos), a forma de autorização é prevista no regulamento (portarias do próprio órgão que delega), o motivo é fundado na lei e regramento de regência e a finalidade é de interesse público, não cabendo falar em ato administrativo passível, lato senso, de anulação.
Revista Consultor Jurídico, 23 de fevereiro de 2011